[RESENHA] A CURVA DO SONHO, URSULA K. LE GUIN.

novembro 04, 2019


Quem nunca acordou de repente depois de sonhar algo que sentiu em sua própria pele ter sido real? Acho que todos nós. Agora, imagine você perceber que seu sonho se concretizou e modificou todo o universo, fazendo com que milhões de pessoas fossem dizimadas e novas formas de vida fossem criadas. Esta é uma das premissas vistas em A curva do sonho, o grande sucesso de Ursula K. Le Guin, uma das maiores autoras de ficção cientifica já vistas. 

SINOPSE: Em um mundo assolado por instabilidade climática e superpopulação, George Orr, um cidadão pacato e mundano, descobre que seus sonhos têm o poder de alterar a realidade. Quando acorda, o mundo que conhecia tornou-se um lugar estranho, quase irreconhecível, em que apenas ele tem a memória de como era antes. Sem rumo, ele busca a ajuda do Dr. William Haber, psiquiatra que logo deixa de lado o seu ceticismo e entende o poder que George possui, transformando-o em um peão de um perigoso jogo, em que o destino da humanidade fica mais ameaçado a cada instante. Tão relevante para o mundo atual quanto era ao ganhar o prêmio Locus (1972), esta história de Ursula Le Guin é um verdadeiro clássico, profético e ferozmente inteligente.

É interessante acompanhar a mente de George Orr e principalmente descobrir a forma com que lidou com seus sonhos e o que acontecerá com ele. A cada sessão, você sente a apreensão, o nervosismo e a desesperança do personagem, seguida pela cada vez mais crescente ambição e desespero do Dr. Haber, que consegue ser ganancioso diante da situação de seu paciente. Aqui, é difícil não se colocar no lugar dos personagens e tentar sentir o mínimo de empatia, como no caso do médico, que encontra em suas mãos uma forma de tentar melhorar o mundo em que habita, mas que acaba sendo consumido pela ignorância e a cegueira do individualismo.

"Mas ele não é um cientista maluco, Orr pensou, de forma nada brilhante; ele é consideravelmente são, ou era. O que o desvirtua é a possibilidade de poder que meus sonhos lhe dão. Ele continua atuando em um papel, e isso lhe dá um papel incrivelmente grande a interpretar. De modo que está até usando a ciência como meio, não como fim… Mas seus fins são bons, não são? Ele quer melhorar a vida da humanidade. Está errado?" 

A forma como a autora trabalha as questões politicas e étnicos-sociais é inspiradora e uma verdadeira aula. Além de perceber-se muita pesquisa, também é visivelmente predominante o domínio do assunto, e não é para menos: a autora sempre foi militante de causas sociais e políticas e por isso utilizou de suas histórias para ampliar as discussões importantes, como o racismo e a misoginia. Também encontramos uma reflexão entre filosofia e religião (determinismo e o taoismo, a exemplo), algo que considero importante e característico da autora. Por todas estas questões, apesar do livro ser pequeno, o ritmo de leitura é lento, e por ora, chega a ser cansativo.

Por falar em feminino, a personagem de Heather LeLache se soma a narrativa de forma a não somente ser uma parceira em potencial a Orr, mas por trazer um segundo olhar acerca da discussão entre poder e submissão. Entre o certo e o errado. E principalmente, sobre raça. É realmente interessante acompanhar suas percepções quando assiste a uma das sessão do Dr. Haber com Orr. Apesar disto, nota-se uma falta de desenvolvimento por parte da autora em relação a seus personagens. Eu realmente gostaria de saber mais sobre eles, e acredito que ajudaria na compreensão de suas ações e escolhas ao longo da obra.

No campo da ficção é muito bacana mergulhar no estudo sobre os sonhos e nos diversos avanços que a ciência tem conquistado a respeito dele. Existem muitos termos técnicos que são explicados em parágrafos grandes e extensos. Em alguns momentos até anotei alguns conceitos para pesquisar posteriormente. Contudo, existem aqueles que já são de nosso conhecimento, como a realidade alternativa, enfrentada por Orr. A BBC Brasil fez uma matéria bem bacana a respeito disto, se você se interessar, pode lê-la por este link.

Acredito que o maior trunfo do livro é observar como o homem se porta quando tem em suas mãos a condição de "brincar de forma a parecer Deus". Mais do que uma ficção científica, A curva do sonho é a percepção de que pessoas que chegam a um nível de poder, quando tomadas pela sede de uma principio, se esquecem de sua própria humanidade, onde acabam por disseminar um lastro de destruição que pode ser irreversível.

Apesar do livro ter sua adaptação (The Lathe of Heaven, 1980), recomendo um que poderá ser complementar a discussão posta pela obra: A Onda (2008).

"A possibilidade infinita, a integridade ilimitada e incondicional do ser que não está comprometido, não reage, não foi entalhado: o ser que, não sendo nada além de si mesmo, é tudo".


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SOBRE A AUTORA: Ursula K. Le Guin é uma das maiores autoras de ficção científica, além de ser aclamada também por suas obras sensíveis e poderosas de não ficção, fantasia e de ficção contemporânea. Conhecida por abordar questões de gênero, sistemas políticos e alteridade em suas obras, recebeu prêmios honrosos como Hugo, Nebula, National Book Award e muitos outros. 

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