[RESENHA] KINDRED: LAÇOS DE SANGUE, OCTAVIA BUTLER.
janeiro 18, 2020
Octavia Butler é conhecida como a dama da ficção científica, pois ganhou notoriedade neste gênero que é predominantemente masculino, assim como suas colegas de profissão Ursula K. Le Guin, Charlotte Perkins Gilman, Ayn Rand e muitas outras. Além disso, o fato de ser negra e abordar o passado de seu povo de forma tão realística e representativa a colocou em um patamar que mais tarde foi reconhecido como extremamente importante, principalmente pelas histórias atemporais e excepcionais que sempre escreveu.
SINOPSE: Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça. Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta a seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida... até acontecer de novo. E de novo. Quanto mais tempo passa no século XIX, numa Maryland pré-Guerra Civil – um lugar perigoso para uma mulher negra –, mais consciente Dana fica de que sua vida pode acabar antes mesmo de ter começado.
Kindred (seu quarto livro) foi originalmente escrito em 1979 e publicado pela primeira vez no Brasil em 2017 pela Editora Morro Branco, que se tornou a oficial de Octavia por aqui. É importante contar um pouquinho sobre a história da autora, que reflete suas vivências e conhecimentos em suas obras. Ela nasceu em 1940, quando ocorria nos EUA a segregação racial, onde existia a separação cruel entre brancos e negros. Ao se formar na faculdade e se aprofundar nas relações de violência raciais, percebeu que a origem estava em eventos passados, ocorridos durante a escravidão. Sempre ouvindo o discurso "querida, negros não podem ser escritores", Octavia não desistiu e hoje é vencedora dos prêmios Nebula, Hugo e MacArthur Fellowship, principais da ficção científica.
Assim, tudo o que produziu se encontrava naquilo que pesquisava, conhecia e acreditava. Kindred, seu livro mais popular, mostra exatamente isto ao nos trazer uma personagem forte como Dana e toda a sua trajetória ao longo da leitura. Como visto na sinopse, nossa protagonista irá viajar no tempo, mais precisamente em 1815, durante a pré-Guerra Civil, época em que era perigoso ser negro, ainda mais mulher, que sofria terríveis abusos físicos e emocionais. E assim continua, até descobrir qual a sua verdadeira missão e como pode ajudar seus ancestrais.
É um livro que dá muitos debates, principalmente por toda a questão racial que é colocada aqui de maneira esclarecedora. O choque de Dana ao se deparar em outro século e em uma época terrível, traz reflexos atuais em nossa sociedade, recontando as dores do cotidiano dos escravos, em especial para as mulheres. Na primeira vez que ela visita este passado, ajuda um garotinho chamado Rufus, filho de um dos senhores. A partir deste episódio, acaba criando um laço afetivo com ele. Porém, tudo muda quando ele cresce e se transforma em um homem parecido com seu pai: cruel e imprevisível.
A forma como a autora vai nos ambientando sobre o período em questão é complicada de ler e quase parece que podemos sentir a dor de cada chicotada, tornando difícil prosseguir em alguns trechos. A autora não ameniza as palavras ou expressões, principalmente quando indicam algum tipo de violência, como na cena em que algumas personagens conversam sobre estupro. A inferiorização do homem e da mulher negra é posta como uma forma de reflexão que se entrelaça com o presente de Dana e até com sua relação amorosa, já que seu marido Kevin, que é branco, também a acompanha e acaba tendo visões diferentes das suas.
O que nos leva a falar deste ponto em específico: Kevin discorda de alguns pontos que Dana tenta conversar com ele, principalmente quando se refere a Rufus. Porém, duas coisas ficam claras: 1) ele enquanto homem e branco não percebia os seus muitos privilégios e portanto 2) não conseguia entender o sentimento, opiniões e certezas que Dana, enquanto mulher negra, tentava lhe passar. E não que Kevin seja um personagem projetado para ser ruim, muito pelo contrário: sua visão de mundo está embaçada, por conta do apagamento histórico, social e cultura que nossa própria sociedade produz, fazendo com que não perceba a realidade além daquela que foi condicionado a viver. O que não deixa de ser um paralelo para as discussões que temos atualmente, em que falamos sobre a importância da luta do movimento negro, feminismo negro e do local de fala. Como dito, existe um passado que quer ser apagado, mas que infelizmente se mostra diariamente presente no racismo estrutural.
Outro ponto que vale destacar como reflexão é o personagem de Rufus. Durante sua infância, fica claro que a influência de uma pessoa estudada, lúcida e entendida que quem como Dana, teve um impacto positivo na vida de Rufus quando criança, mesmo que durante o pouco tempo que conseguiu visitá-lo. Porém, em sua fase adulta, percebe-se que ele se transformou na figura de seu pai. Fiquei pensando em como crescemos vendo figuras (ou espelhos) em nossas vidas, sejam familiares, amigos ou pessoas próximas e o quanto suas ações podem refletir nas nossas. Rufus estava em um contexto que o levaria a dar continuidade no trabalho de seu pai, o que fica claro na sua relação abusiva e obsessiva com Alice e no que faz, ao final do livro, com a única pessoa que poderia amá-lo, Dana.
A escrita de Octavia é simplesmente deliciosa. Por mais que o livro apresente um tema pesado e necessário, a leitura flui sem problemas. Tem muitos momentos que dão raiva, nos deixam tristes, apreensivos e nos emocionam pela sua simplicidade e simbolismo, como Dana ensinando as crianças a ler, por acreditar que a educação pode salvar vidas, como a própria autora do livro sempre defendeu. Kindred é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa. Ele traz personagens que causarão muito desconforto mas que também irão compartilhar muitas reflexões essenciais. Uma obra atemporal que deve ser discutida, principalmente pela sua proximidade com nossa própria história.
Assim, tudo o que produziu se encontrava naquilo que pesquisava, conhecia e acreditava. Kindred, seu livro mais popular, mostra exatamente isto ao nos trazer uma personagem forte como Dana e toda a sua trajetória ao longo da leitura. Como visto na sinopse, nossa protagonista irá viajar no tempo, mais precisamente em 1815, durante a pré-Guerra Civil, época em que era perigoso ser negro, ainda mais mulher, que sofria terríveis abusos físicos e emocionais. E assim continua, até descobrir qual a sua verdadeira missão e como pode ajudar seus ancestrais.
É um livro que dá muitos debates, principalmente por toda a questão racial que é colocada aqui de maneira esclarecedora. O choque de Dana ao se deparar em outro século e em uma época terrível, traz reflexos atuais em nossa sociedade, recontando as dores do cotidiano dos escravos, em especial para as mulheres. Na primeira vez que ela visita este passado, ajuda um garotinho chamado Rufus, filho de um dos senhores. A partir deste episódio, acaba criando um laço afetivo com ele. Porém, tudo muda quando ele cresce e se transforma em um homem parecido com seu pai: cruel e imprevisível.
A forma como a autora vai nos ambientando sobre o período em questão é complicada de ler e quase parece que podemos sentir a dor de cada chicotada, tornando difícil prosseguir em alguns trechos. A autora não ameniza as palavras ou expressões, principalmente quando indicam algum tipo de violência, como na cena em que algumas personagens conversam sobre estupro. A inferiorização do homem e da mulher negra é posta como uma forma de reflexão que se entrelaça com o presente de Dana e até com sua relação amorosa, já que seu marido Kevin, que é branco, também a acompanha e acaba tendo visões diferentes das suas.
O que nos leva a falar deste ponto em específico: Kevin discorda de alguns pontos que Dana tenta conversar com ele, principalmente quando se refere a Rufus. Porém, duas coisas ficam claras: 1) ele enquanto homem e branco não percebia os seus muitos privilégios e portanto 2) não conseguia entender o sentimento, opiniões e certezas que Dana, enquanto mulher negra, tentava lhe passar. E não que Kevin seja um personagem projetado para ser ruim, muito pelo contrário: sua visão de mundo está embaçada, por conta do apagamento histórico, social e cultura que nossa própria sociedade produz, fazendo com que não perceba a realidade além daquela que foi condicionado a viver. O que não deixa de ser um paralelo para as discussões que temos atualmente, em que falamos sobre a importância da luta do movimento negro, feminismo negro e do local de fala. Como dito, existe um passado que quer ser apagado, mas que infelizmente se mostra diariamente presente no racismo estrutural.
Outro ponto que vale destacar como reflexão é o personagem de Rufus. Durante sua infância, fica claro que a influência de uma pessoa estudada, lúcida e entendida que quem como Dana, teve um impacto positivo na vida de Rufus quando criança, mesmo que durante o pouco tempo que conseguiu visitá-lo. Porém, em sua fase adulta, percebe-se que ele se transformou na figura de seu pai. Fiquei pensando em como crescemos vendo figuras (ou espelhos) em nossas vidas, sejam familiares, amigos ou pessoas próximas e o quanto suas ações podem refletir nas nossas. Rufus estava em um contexto que o levaria a dar continuidade no trabalho de seu pai, o que fica claro na sua relação abusiva e obsessiva com Alice e no que faz, ao final do livro, com a única pessoa que poderia amá-lo, Dana.
"Eu senti como se estivesse perdendo meu lugar aqui no meu próprio tempo. O tempo de Rufus era uma realidade mais nítida e forte. O trabalho era mais difícil, os cheiros e sabores eram mais fortes, o perigo era maior, a dor era pior ... O tempo de Rufus exigia coisas minhas que nunca haviam sido exigidas antes, e poderiam me matar facilmente se eu não atendesse às suas demandas. Essa era uma realidade forte e poderosa que as gentis conveniências e luxos desta casa, de agora, não podiam tocar."
"Há coisas piores do que morrer"
Rascunho de Octavia sobre o livro (Fonte: Arquivos de Octavia E. Butler). |
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SOBRE A AUTORA: Filha de um engraxate e uma empregada doméstica, a Grande Dama da Ficção Científica nasceu na Califórnia, em 1947. Aos 12 anos, assistiu ao filme “A Garota Diabólica de Marte”, que era tão ruim, mas tão ruim, que mudou completamente sua vida. Octavia decidiu que contaria histórias melhores do que aquela e assim começou sua jornada como escritora. A autora precisou lutar contra a pobreza, a dislexia e o racismo para receber um diploma universitário e foi a primeira mulher negra norte-americana a conquistar o sucesso em uma área da literatura dominada por homens: a ficção científica. Ao longo de sua carreira, foi laureada com o MacArthur Fellowship, Hugo, Nebula e Locus Awards, além de ser indicada mais de 20 vezes à prêmios. Representava em seus livros heroínas negras e explorava temas como raça, empoderamento feminino, divisão de classe, sexualidade e escravidão. Em 2010, quatro anos após sua morte, foi inserida no Hall da Fama da Ficção Científica, em Seattle. Sua obra continua tão relevante, que ainda hoje é objeto de estudo e seu trabalho e vida ganharam uma magnifica exposição na The Huntington Library, na Califórnia.
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